Colunistas
Crônica de um dia
De súbito, Jorge acorda. Antes, apenas dormia. E por uma eternidade de horas, navegou pelas fronteiras do sonho e do inconsciente. Agora, inserindo-se novamente na realidade, abre os olhos, estica as pernas, alonga os braços e permanece, de fronte à janela, ainda deitado, recompondo o inventário perdido de seu eu.
Refaz a linha do seu passado, passa fugazmente pelos problemas de ontem, se demora nas tortuosidades idas e vividas, atualiza os compromissos de hoje, e julga-se. Sim, após se lembrar dos quadros que compõe sua vida, Jorge julga o que é, o que fez e o que deixou de fazer.
E só então, quando terminada a aquarela da memória, reorganizado os fragmentos de sua existência, julgado e aceitado novamente o que fez e desfez, Jorge levanta; prolonga-se no banho, se apressa no café; mas parte, um pouco atrasado, ao trabalho que lhe paga o salário.
Almoça no horário costumeiro, toma o chá que lhe é preferido, gasta o mesmo bom-dia aos rostos de sempre, reclama do calor, do frio, do prefeito, discute o jogo de quarta-feira. Cumpre os prazos e, secretamente, maldiz o patão.
Ao fim do dia, já cansado, retorna ao mesmíssimo ponto de onde saiu. O dia escurece, o pijama é posto, o alarme reconfigurado, os votos de amor à mulher reafirmados. Fecham-se os olhos — e o dia chegou ao fim. O capítulo da quinta-feira de Jorge do dia tal e do ano tal, escrito.
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Mas de que Jorge se lembrará deste dia comum nas suas últimas golfadas de vida? De que lhe serão proveitosas as rotinas cumpridas e os dias em que nenhum abalo sísmico – seja feliz ou triste – alterou o curso de sua vida?
Quando o homem se aventurar em conhecer a si mesmo, do que se lembrará? Acaso não nos reconhecemos pela memória das tardes marcantes, das noites tempestuosas? E o excedente – este resto que se acumula nas gavetas da memória –, como nos marcam?
Não ficam apenas esquecidos, ultrajados de importância e sentido?
Se há de ser assim, então o mundo se esqueceu da preciosidade dos detalhes. Se esqueceu de onde nasce as paixões e de onde emerge o sentido: nos pequeninos sinais de beleza, que melhor manifestam a grandiosidade da vida.
Se o homem perde os sinais, se perde os detalhes, perderá, por lógica, a vida.