Colunistas
A fé em crer e não crer
No livro “Public Enemies: dueling writers take on each other and the word”, Michel Houellebecq, um dos principais romancistas da atualidade, se declara, com tristeza, um ateu: assumidamente, lhe falta a capacidade de injetar em si mesmo um nervo de fé, um amor ao desconhecido, um repouso na eternidade e no mistério.
Em certa altura do livro, Michel descreve uma relação típica com Deus — ele que, creio, procurou e ainda procura encontrar meios e provas de que as histórias da salvação e da graça, são mais do que histórias, e de que o conforto no amor divino se complementa entre experiências individuais e certezas lógicas — que parece traduzir a sensação dolorosa que compartilhamos quando se trata da fé no Deus cristão:
‘“Como eu amei, profundamente amei o magnífico ritual, perfeito através dos séculos, da Santa Missa. ‘Senhor, eu não sou digno que entreis em minha morada, mas dizei uma só palavra e serei salvo.’ Ah sim, tais palavras me tocaram, eu as recebi em meu coração. E por 5 ou 10 minutos durante os domingos, eu acreditava em Deus; mas então eu saía para fora da igreja e tudo desaparecia, rapidamente, em alguns minutos caminhando pelas ruas de Paris.”’ – página 137 – tradução minha.
Eu comungo desse mesmo desaparecimento, e creio que comungarei por toda a minha vida. A arquidiocese de Santa Teresinha do Menino Jesus, por exemplo, na Visconde Guarapuava, é para mim uma das mais belas igrejas de Curitiba, que lembra vagamente a rotunda no interior do Panteão de Paris.
O pórtico em madeira escura, as pinturas do teto de anjos brincando inocentemente no céu, o altar branquíssimo como uma nuvem, os sinos, o incenso, a gloriosa elevação do sacramento da eucaristia pelo padre aos fiéis — tudo que orienta a fé católica significa aos meus olhos uma fuga ao tempo, uma espécie de reconciliação, de escapismo. De proliferação.
É lindo, mas dura pouco. Sob a rua da Visconde Guarapuava, o mundo retorna a girar e o encantamento rapidamente se desfaz. Torno a pensar, a me envolver, e o grotesco de minha vida e a de meus companheiros é uma realidade que dificulta manter meus olhos sob um estado de graça, de misericórdia e principalmente de compreensão.
Realmente, já fora de uma igreja consigo pensar em diversas razões para não frequentá-la: as músicas tenebrosas com bateria e violão, as fofocas, intrigas, a falta de entendimento, a incoerência, a redução de tudo a uma doutrina moral. Os católicos precisam melhorar muito. Não há dúvidas disso.
Mas a questão é que todos esses impedimentos e incompreensões não impedem que meus atos e pensamentos, quase que independentes de minha vontade, queiram repousar no colo de Maria Santíssima sob o olhar atento de Deus.
E sei que existe essa mesma vontade em Michel Houellebecq. Para ele, há sofrimentos que são inúteis, situações tenebrosas que não aprendemos nada, que não retiramos uma única lição, e que tudo não passa de um acaso mal-intencionado.
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Inclusive, o próprio universo, no final das contas, não passaria de um enorme acaso, e a sustentação de nossas vidas dependeria de uma série de variantes em uma redoma perdida num espaço de 13,8 bilhões de anos.
Há realmente uma angústia enorme em crer, até porque o mais santo dos homens pode não aprender nada com a morte sob seus pés.
Ainda assim, muitos escolhem conservar o mistério, abraçar uma incerteza e confiar no coração. Não sei a exata razão do porquê, sob todas essas dificuldades, optam pela fé: seria uma conversão de sentimento, de razão, de herança?
Pouco importa. Desde experiências individuais, argumentos práticos como o de Auguste Comte — de que no longo prazo, uma sociedade não pode subsistir sem religião—, ao espanto das descobertas científicas de uma organização geral de todo o universo, o ser humano continua a crer, porque um mundo sem Deus, sem espiritualidade, apenas com o nada, é suficiente para deixar qualquer um completamente assustado.
E a máxima demonstração que Deus dá de si mesmo aos meros mortais, é tão precária, tão notadamente frágil, que não deixa de aumentar ainda mais o amor e o mistério, descritos perfeitamente nas últimas linhas de “Seretonina”, do mesmo Michel Houellebecq:
“Na verdade Deus se encarrega de nós, pensa em nós a cada instante e nos dá instruções às vezes muito precisas. Os arroubos de amor que emergem do peito e interrompem a respiração, as iluminações, os êxtases, inexplicáveis se considerarmos nossa natureza biológica, e nossa condição de simples primatas são sinais extremamente claros.
E hoje entendo o ponto de vista de Cristo, seu permanente desespero ante os corações endurecidos: eles têm todos os sinais e não levam em conta. Será realmente preciso que eu, ainda por cima, dê minha vida por esses miseráveis? Será realmente preciso ser tão explícito?
Parece que sim.” – Seretonina, Michel Houellebecq, Alfaguara.